segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

João Grilo passa a faixa a Fofão


Henrique Magalhães


Nada mais destruidor de reputação que a chegada ao poder. Com o PT não haveria de ser diferente, ou bem que poderia ser, mas o partido empenhou-se em seguir a regra e superar-se no desencanto de uma das mais legítimas e acalentadas quimeras brasileiras.



Figura de proa na construção do partido, Lula tornou-se desde cedo, e até antes deste, uma figura emblemática, por vezes carismática e messiânica, na promessa de instauração da cidadania plena do povo brasileiro, atolado numa miséria e ignorância próprias da servidão. Tarefa hercúlea e utópica para um ascendente dessa classe desfavorecida, se esperada no transcorrer de um simples mandato de quatro anos. Para alcançá-la, não sem o apoio de um enturrage pseudo-intelectual, o partido projetou um comando da nação por pelo menos 20 anos, tempo que considerava suficiente para implantar uma transformação radical política e social.


Qual castelo de cartas que tomba ao primeiro sopro, não demorou em se ver o verdadeiro objetivo do partido ao chegar ao poder. Os ideais transformadores transmutaram-se num projeto de poder a ser alcançado a qualquer custo, com o falso brilho lusco-fusco do povo no poder. O primeiro e fundamental passo para isso foi curvar-se à agenda do governante antecessor, que nem merece o respeito de se citar o nome. A política econômica mantida em mãos confiáveis do capital especulativo internacional garantiria o início da governabilidade, sem ruptura ou desestrutura social. Com as taxas de juros mais altas do mundo, com encargos tributários imorais associados ao descaso dos serviços públicos, essa realidade penaliza escandalosamente o povo para quem se diz trabalhar.


Para isso têm-se as compensações: as bolsas emergenciais para resgatar o povo da miséria tornaram-se programa de governo – e de campanha, evidentemente –, ampliando-se numa cornucópia bizarra a gerar dependência e humilhação. A bolsa escola transformou-se em bolsa família, que deve ser complementada com a bolsa gás e até a bolsa celular – proposta populista do ministro Hélio Costa que lesará ainda mais os cofres públicos e fará a farra as empresas de telefonia. O “espetáculo do crescimento” alardeado por Lula como uma bravata de início de governo não passou disso, dessas frases de efeito que servem para elevar o tom ufanista dos descerebrados e acríticos que seguem tirando o chapéu para o presidente João Grilo.


Fanfarrão, metido a engraçado, rindo por cima da carne seca, bobo da corte de palácios dos quatro cantos do mundo, esse é o cara, a encarnação de um arquétipo do povo brasileiro, ao molde de um Macunaíma ou um João Grilo, que sabe tirar vantagem de qualquer situação, mesmo naquelas em que está metido até o tutano. Os escândalos de corrupção em que se envolveu o PT são o melhor exemplo disso. Em vez da hombridade de um mea culpa, o presidente saiu de fininho. Em baixo de suas barbas, a atingir o primeiro escalão de seu governo, o João Grilo nada viu, nada ouviu e muito menos tinha o que dizer.


O governo, a governabilidade está acima disso tudo, nem que para isso seja preciso fechar acordos espúrios com os herdeiros da ditadura que o PT e o presidente tão diligentemente se empenharam em combater. Cego, surdo, mudo, esse é um governo que diríamos deficiente, ou, para ser politicamente correto, portador de necessidades especiais. Necessidade de se manter no poder para cumprir a agenda de transformação do país, mas numa ótica torta, opaca, desfocada, cheia de ruídos e grunhidos, bem diferente da transcendência que os 500 anos de opressão ansiavam.


Surpreende-nos que no bojo da mistificação latino-americana castrista ou bolivariana o presidente não tenha cedido ao canto sedutor do terceiro mandato, como estratégia para a perpetuação no poder. Contudo, para substituí-lo, uma nova mística está sendo construída de mulher enérgica, resistente, sofrida e digna do poder. Em torno da ministra Dilma Rousseff ergue-se uma máscara de mãezona com maquiagem e peruca que mais parece o saudoso personagem infantil Fofão. A recauchutagem empreendida na aparência da ministra não consegue disfarçar seu caráter João Grilo: nas propagandas positivas do governo, é a nova porta-voz, nas equivocadas, passa ao largo. Queria ver a ministra de burka a saudar o governante fascista do Irã, a quem Lula pagou um mico internacional. Apregoado pelo governo como ato de independência política do Brasil, a arrogância da diplomacia brasileira não passou de uma irresponsabilidade histórica.

Créditos: João Grilo e Fofão, rindo não sei de que. A partir de fotografia de Dida Sampaio/AE

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Uma parada do arraso

Aos poucos vão chegando, timidamente, meio ressabiados, ficam pela calçada, sobre os bancos, na areia da praia. O ponto de referência é o Sesc Cabo Branco, mas se vê o desfilar da galera desde Tambaú, a uns dois quilômetros, dando sinais de uma modesta excentricidade: um toque colorido no cabelo, uma leveza maneirosa, algum acessório nas cores do arco-íris. É o indício da Parada Gay, ou melhor, Parada da Diversidade Humana LGBT, eufemismo para juntar gays, lésbicas, bissexuais, travesti, transexuais e toda sorte de expressão sexual sem causar incômodo ou constrangimento. Com um nome genérico desses, Parada da Diversidade Humana, cabe qualquer coisa, qualquer norma, qualquer transgressão.


A intenção é das melhores e o fruto de tal manifestação mexe realmente com a carapuça provinciana da cidade. É bom lembrar que por baixo do verniz civilizatório, essa fina camada sujeita a qualquer intempérie, repousa em estado de vigília a barbárie, que se manifesta violentamente ao menor cutucão. Não foi isso que se viu no episódio da minissaia na Universidade Bandeirante – Uniban – doravante apelidada Unitaliban? Não entremos em detalhes para não mudar o foco, mas fica claro que avançamos em nosso processo civilizatório no arranco, no sopapo, sujeito vez ou outra a descer ladeira abaixo, como uma jamanta sem freio.


As paradas gays cumprem esse papel de dar umas arrancadas e achocalhar a pasmaceira do senso comum de uma sociedade que continua machista e preconceituosa e, por tabela, cada vez mais religiosa. Mesmo que uma vez ao ano, as paradas gays são uma afirmação da homossexualidade como uma condição humana legítima e intransigente, são a visibilidade que falta nos 364 dias do ano, mas que se manifesta em sua plenitude e liberdade no espaço seguro dessa ocasional coletividade.


Em torno dos trios elétricos com atrações musicais da cidade ou com música eletrônica teoricamente vale tudo: o beijo arrebatador e fortuito, embalado pela euforia da batida sincopada, o desfilar de jovens de mãos dadas, o carinho e afeto públicos, rompendo a membrana tênue da estratégica privacidade. Isso enquanto não aparece uma câmera fazendo a cobertura televisiva. Na ocorrência, é uma revoada de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais pra todo lado, lembrando que a parada é também um espaço de ficção, que pode ser quebrado a qualquer momento pela realidade incorporada na câmera de televisão.


O que revela a parada de forma mais incômoda é o caráter reacionário de grande parcela de gays e lésbicas da cidade. A classe média intelectual e “bem pensante” prefere, no momento, ficar em casa com seus livros e vídeos, num exercício de alheamento conveniente e confortador. Para eles não existe parada LGBT, ou não têm nada a ver com isso. A parada não é mais que um punhado de bichinhas fechosas e sapatões querendo aparecer. Pois, são esses gays e lésbicas que namoram dissimuladamente nas boates e festas temáticas, de preferência fora da cidade, na praia do Jacaré, em Recife, em Pipa e Natal. Longe do olhar vigilante da vizinhança de muro baixo ou da família.


A atitude dos homossexuais classe média intelectualizada denota mais uma faceta da homofobia, cruelmente aplicada contra os próprios, imiscuída com um inclassificável preconceito de classe. A parada é uma manifestação popular, oriunda das periferias, com cara de gente simples, sofrida e muitas vezes discriminada. É “a cara do povo do jeito que ela é”, que exige seus direitos de livre amar, que fecha, esperneia, pinta e borda, que está fazendo, como protagonista, a mudança política da visibilidade e conquistando espaço, ainda que no arranco.


Créditos
Fotos de H. Magalhães: foto 1 - Concentração da Parada em frente ao Sesc Cabo Branco, em 15 de novembro de 2009; foto 2 - Dight e Light dão o ar de sua graça; foto 3 - uma "vera gata"