segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Uma parada do arraso

Aos poucos vão chegando, timidamente, meio ressabiados, ficam pela calçada, sobre os bancos, na areia da praia. O ponto de referência é o Sesc Cabo Branco, mas se vê o desfilar da galera desde Tambaú, a uns dois quilômetros, dando sinais de uma modesta excentricidade: um toque colorido no cabelo, uma leveza maneirosa, algum acessório nas cores do arco-íris. É o indício da Parada Gay, ou melhor, Parada da Diversidade Humana LGBT, eufemismo para juntar gays, lésbicas, bissexuais, travesti, transexuais e toda sorte de expressão sexual sem causar incômodo ou constrangimento. Com um nome genérico desses, Parada da Diversidade Humana, cabe qualquer coisa, qualquer norma, qualquer transgressão.


A intenção é das melhores e o fruto de tal manifestação mexe realmente com a carapuça provinciana da cidade. É bom lembrar que por baixo do verniz civilizatório, essa fina camada sujeita a qualquer intempérie, repousa em estado de vigília a barbárie, que se manifesta violentamente ao menor cutucão. Não foi isso que se viu no episódio da minissaia na Universidade Bandeirante – Uniban – doravante apelidada Unitaliban? Não entremos em detalhes para não mudar o foco, mas fica claro que avançamos em nosso processo civilizatório no arranco, no sopapo, sujeito vez ou outra a descer ladeira abaixo, como uma jamanta sem freio.


As paradas gays cumprem esse papel de dar umas arrancadas e achocalhar a pasmaceira do senso comum de uma sociedade que continua machista e preconceituosa e, por tabela, cada vez mais religiosa. Mesmo que uma vez ao ano, as paradas gays são uma afirmação da homossexualidade como uma condição humana legítima e intransigente, são a visibilidade que falta nos 364 dias do ano, mas que se manifesta em sua plenitude e liberdade no espaço seguro dessa ocasional coletividade.


Em torno dos trios elétricos com atrações musicais da cidade ou com música eletrônica teoricamente vale tudo: o beijo arrebatador e fortuito, embalado pela euforia da batida sincopada, o desfilar de jovens de mãos dadas, o carinho e afeto públicos, rompendo a membrana tênue da estratégica privacidade. Isso enquanto não aparece uma câmera fazendo a cobertura televisiva. Na ocorrência, é uma revoada de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais pra todo lado, lembrando que a parada é também um espaço de ficção, que pode ser quebrado a qualquer momento pela realidade incorporada na câmera de televisão.


O que revela a parada de forma mais incômoda é o caráter reacionário de grande parcela de gays e lésbicas da cidade. A classe média intelectual e “bem pensante” prefere, no momento, ficar em casa com seus livros e vídeos, num exercício de alheamento conveniente e confortador. Para eles não existe parada LGBT, ou não têm nada a ver com isso. A parada não é mais que um punhado de bichinhas fechosas e sapatões querendo aparecer. Pois, são esses gays e lésbicas que namoram dissimuladamente nas boates e festas temáticas, de preferência fora da cidade, na praia do Jacaré, em Recife, em Pipa e Natal. Longe do olhar vigilante da vizinhança de muro baixo ou da família.


A atitude dos homossexuais classe média intelectualizada denota mais uma faceta da homofobia, cruelmente aplicada contra os próprios, imiscuída com um inclassificável preconceito de classe. A parada é uma manifestação popular, oriunda das periferias, com cara de gente simples, sofrida e muitas vezes discriminada. É “a cara do povo do jeito que ela é”, que exige seus direitos de livre amar, que fecha, esperneia, pinta e borda, que está fazendo, como protagonista, a mudança política da visibilidade e conquistando espaço, ainda que no arranco.


Créditos
Fotos de H. Magalhães: foto 1 - Concentração da Parada em frente ao Sesc Cabo Branco, em 15 de novembro de 2009; foto 2 - Dight e Light dão o ar de sua graça; foto 3 - uma "vera gata"